Arte da Imagem: J. Borges (google)
A cantoria de repente teve início, aqui no Nordeste, em
terras paraibanas, ali pelas quebradas da serra do Teixeira, no meado do século
dezenove, com o surgimento dos primeiros cantadores e repentistas: Agostinho
Nunes da Costa(1797-1852) e seus filhos Antônio Ugolino Nunes da Costa, Ugolino
do Sabugi(Teixeira – 1832-1895), primeiro grande cantador brasileiro, e
Nicandro Nunes da Costa(Teixeira – 1829-1918), o poeta ferreiro. Nessa fase
inicial e na de afirmação da cantoria como profissão e arte, vamos encontrar
Silvino Pirauá Lima(Patos-PB – 1848-1913), introdutor da sextilha no cordel e
na cantoria, do uso da deixa e do martelo-agalopado como se canta hoje; Germano
Alves de Araújo Leitão(Germano da Lagoa – Teixeira – PB – 1842-1904); Romano da
Mãe d’Água(1840-1891), Francisco Romano Caluête, ou Francisco Romano,
considerado o maior cantador de seu tempo, tornado legenda pelas famosas
pelejas com Inácio da Catingueira(Catingueira-PB – 1845-1881), o chamado gênio
escravo que engrandeceu a cantoria pela beleza e espontaneidade de seu estro.
Outro cantador de grande expressão que marcou espaço na época foi Bernardo
Nogueira(Teixeira – 1832-1895), de quem diz Câmara Cascudo: - “Violeiro
afamado, repentista invencível, mestre-de-armas sertanejo, jogando bem espada e
cacete, era mais inteligente que letrado.” (Vaqueiros e Cantadores, p. 309).
Alguns elegem Gregório de Matos Guerra, o Boca do
Inferno(Bahia – 1633-1693) e o Padre Domingos Caldas Barbosa(1738 – 1800) como
precursores da cantoria de viola no Brasil. Os dois, na verdade bons poetas,
foram cantadores de modinhas ao som da viola, nunca, porém, repentistas dados a
duros e longos desafios. Improvisavam quadrinhas vez por outra, em saraus e
reuniões de intelectuais. Caldas Barbosa, em Portugal, despertou a rivalidade
do grande Bocage, em face do prestígio do primeiro nos salões palacianos,
cantando modinhas e fazendo quadras, vez por outra. Uma feita, Bocage explodiu:
- “Improvisa berrando o bode rouco!” Caldas Barbosa, em resposta, acentuou que
Bocage,
“Um homem de pouca fé,
Só não fala de Jesus
Porque não sabe quem é!”
O nosso mestre maior, Câmara Cascudo, que estudou a obra de
Domingos Caldas Barbosa, para um volume da coleção Nossos Clássicos, não o
considerou precursor da cantoria, assim como não deu também tal título a
Gregório de Matos. E o mestre Cascudo não deixou a desejar a respeito das
origens do desafio, do repente e da cantoria.
Os dois poetas, sem dúvida, influenciaram os violeiros que
cantam modinhas e músicas caipiras, cuja presença em Goiás e Minas é
considerável atualmente. O programa da cantora Inezita Barroso – VIOLA MINHA
VIOLA – na TV CULTURA, é palco desses inúmeros violeiros que muitas vezes nos
levam às lágrimas com suas modinhas predominantemente tristes e langorosas.
Enquanto isso, a nossa cantoria de repente caracteriza-se
pelo confronto entre cantadores, ou seja, pelo desafio, cuja origem remonta à
Grécia Antiga.
A esse respeito, muito se tem questionado, nos últimos
tempos, na ânsia de aclarar as dúvidas e fincar uma estaca em algum ponto do
tempo e do espaço que possa escorar confortavelmente os estudiosos do assunto e
dar resposta firme ao enorme rol de curiosidades insatisfeitas. No Brasil,
somente Cascudo estudou diretamente e com profundidade o assunto. Sílvio
Romero, João Ribeiro, Gustavo Barroso, Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota,
Renato Almeida, além de outros, cuidaram da cultura popular e do folclore, mas
praticamente passaram de largo sobre a origem de nossa cantoria.
Parece-nos que, nessa busca do elo inicial da corrente
eletrizante da cantoria nordestina, ninguém foi mais longe, com respaldo
bibliográfico, do que o nosso gigantesco Luís da Câmara Cascudo, que o vai
vislumbrar no antigo canto amebeu grego grego (desafio entre pastores), cuja
técnica teria sido adotada por Homero na Ilíada e na Odisséia. Oportuno lembrar
que Homero viveu (se é que viveu) por volta dos séculos IX e VIII antes de
Cristo. Assim, o canto amebeu grego já era exercitado há, pelo menos, trinta
séculos de hoje. O mestre potiguar assinala que Horácio e Virgílio
testemunharam a influência desse canto nas populações rurais de seu país. “O
canto alternado reaparece na Idade Média, nas lutas dos Jonglers, trouveros,
Troubadours, Minesingers, na França, Alemanha, Flandres, sob o nome de tenson
ou de Jeux-partis, diálogos contraditórios, declamados com acompanhamento de
laúde ou viola, a viola de arco, avó da rabeca sertaneja”, argumenta Cascudo.
Nosso gênio potiguar jamais abriu mão dessa tese e a sustentou no Dicionário do
Folclore Brasileiro, em Vaqueiros e Cantadores e em Literatura Oral no Brasil.
Contudo, ressalta que os árabes conheceram tal canto. Registra, também, a
posição discordante de Teófilo Braga (1843-1924), grande historiador da
literatura portuguesa, que julgava o desafio português, ou desgarrada, de
origem árabe imitado pelos provençais, mas não arreda pé de sua tese,
acrescentando apoio na obra de Charles Barbier – Introdução aos Idílios de
Teócrito, de que transcreve longa página no próprio original francês. (Cascudo
não gostava de traduzir as transcrições de outras línguas).
As posições de Cascudo e de Teófilo Braga trilham os
seguintes caminhos:
a) Para Cascudo, os árabes absorveram o desafio dos
trovadores provençais, advindo do canto amebeu grego, e o levaram para o
oriente:
b) Para Teófilo Braga, os trovadores provençais receberam o
desafio dos árabes e o imitaram em suas cantigas.
Sobre essas posições conflitantes dos dois mestres, leia-se
Literatura Oral no Brasil, 1984, pp. 346/347.
Um enfoque condizente com a posição de Teófilo Braga é dado
pelo Professor de estética e música e violonista da UFPE Sr. Luís Soler, em seu
livro RAÍZES ÁRABES, NA TRADIÇÃO POÉTICO-MUSICAL DO SERTÃO NORDESTINO,
publicado em 1978, citado por Alberto da Cunha Melo, (UM CERTO LOURO DO PAJEÚ,
edição da UFRN, Natal, 2001, p. 61/65).
O autor de UM CERTO LOURO DO PAJEÚ, abraçando a tese do
Prof. Luís Soler, admite que “a literatura oral é pré-histórica,
pré-documental, pré-escrita, do beduíno do deserto ao repentista nordestino.”
(obr. cit. , p. 39).
Um dos trunfos dessa tese é a origem árabe da rabeca e da
viola, instrumentos que acompanham os cantadores nordestinos desde os mais
antigos. Sabe-se que a viola foi, provavelmente, o primeiro instrumento de
cordas que o português divulgou no Brasil (século XVI), porque na época do
nosso povoamento a viola em Portugal estava em seu grande esplendor. Por outro
lado, a orquestra típica das festas jesuíticas se compunha da viola, do
pandeiro, do tamboril e da flauta. (Cascudo, Dicionário). Mas tudo indica que a
viola, naquela época, ainda não era a dos nossos cantadores de repente e
desafio, senão a dos cantadores de modinhas, canções, hinos eclesiásticos, etc.
O problema da ausência de documentação, tanto na antiguidade
como em épocas mais recentes, a exemplo do período colonial brasileiro até a
primeira metade do século dezenove, causa enorme dificuldade para o
preenchimento dos espaços vazios na história de nossa cantoria e abre margem a
inevitáveis especulações que, mais das vezes, não contribuem senão para acirrar
a curiosidade dos interessados no assunto, embora talvez possa estimular o
esforço a novas e laboriosas pesquisas.
Assim como o cordel, o desafio de repentistas nos veio de
além-mar, provavelmente ao mesmo tempo, embora disso não se tenha documentação.
“Não conheço documentação sertaneja anterior ao séc. XVIII”, afirma Câmara
Cascudo (Literatura Oral no Brasil, 1984, p. 339).
Não contestamos a qualidade dos dois poetas e cantadores de
modinhas, assim como a sua capacidade de improvisar. O que não dá para aceitar,
em sã consciência, é que eles tenham influenciado os nossos velhos repentistas
surgidos na primeira metade do século dezenove. A esse respeito, poderíamos
questionar:
1º) Se o mineiro Caldas Barbosa e o baiano Gregório de Matos
houvessem aberto caminho à cantoria dos repentistas nordestinos, por que estes
não surgiram em Minas ou na Bahia? 2º) Se a influência tivesse vindo daquelas
violas, por que vários dos primeiros cantadores usavam pandeiro e rabeca?
Os nossos primeiros repentistas, surgidos no sertão da
Paraíba, beberam, com certeza, em outras fontes, assim como os cordelistas,.
Tanto os repentistas quanto os cordelistas iniciaram sua obra poética em
quadras de sete sílabas, como se fazia no velho mundo. “Não houve criação
brasileira nem alteração de maior na nomenclatura.” (Cascudo, obra citada, p.
339).
Com relação aos nossos repentistas, parece-nos provável que
desde tempos anteriores ao seu surgimento no sertão da Paraíba, cantadores
anônimos tenham perambulado Nordeste afora, ensaiando desafios, tocando viola e
batendo pandeiro, porque essas coisas não surgem de vez, logo com um grupo
quase organizado de diversos cantadores, ali, nas quebradas do Teixeira. Mas é
claro que não temos documentação disso, como já observamos linhas atrás.
De qualquer forma, pelo sim ou pelo não, a cantoria
continuará a mesma. Não é uma questiúncula desse naipe que lhe irá mudar os
rumos ou as características atuais. Nosso empenho é que ela mergulhe no
terceiro milênio com água e lenha, vencendo como sempre todas as adversidades e
preservando os verdadeiros valores da cultura popular.
Cabe uma palavra, ainda, sobre a sextilha. Segundo José
Alves Sobrinho e Átila Augusto F. de Almeida, essa forma poética teria sido
criada por Silvino Pirauá Lima (Dicionário Bio-Bibliográfico dos Repentistas e
Poetas de Bancada, I vol., p. 45). Em verdade, o que Pirauá fez foi
introduzi-la na cantoria e no cordel, porquanto “A sextilha setissílábica,
forma absolutamente vitoriosa na literatura de cordel brasileira, ABCBDB, é tão
antiga quanto a quadra, ensinava Carolina Michaelis de Vasconcelos, dizendo-a
popularíssima no séc. XVI.” (Conf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura Oral no
Brasil, Editora da Universidade de São Paulo, 1984, p. 339).
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